FENDA
RESIDENCIA
Entre os municípios de Ibicoara e Iramaia, na Chapada Diamantina, o Vale da Raposa se abre como uma fenda no tempo. Suas formações rochosas monumentais, sua vegetação, suas águas e a ancestralidade desta terra guardam memórias que antecedem a escrita, carregando presenças e ecologias que escutam muito antes de serem escutadas, vibrando sob o solo e pedindo um modo de aproximação, de escuta, de cuidado. Um cuidado radical, capaz de reconhecer que o território não é cenário nem recurso — é corpo vivo.
A residência nasce dessa urgência: cultivar práticas de escuta e de cuidado radical com o território, entendendo-o como uma presença que ensina devagar. Aqui, escutar torna-se um gesto político. Uma forma de suspender o automatismo colonial que nomeia, domina e organiza a Terra em direções fixas, para entrar em relação com tudo o que existe: o visível, o invisível, o audível e o inaudível, o subterrâneo, a terra e o tempo.
A Residência nasce também de um gesto: reaprender a ouvir. Aqui, a escuta não é apenas um sentido, mas uma orientação. Uma forma de caminhar no território sem impor direções, sem norte fixo, abrindo espaço para frequências subterrâneas, histórias ocultas e modos de perceber que escapam à lógica colonial que define mapas, limites e sentidos únicos.
A residência convida artistas, estudiosos e corpos sensíveis a se deixarem afetar por essas presenças — não para extrair, mas para coexistir, cuidar, regenerar. Propomos um tempo de criação onde a escuta é expandida: escuta do corpo, da terra, das memórias que resistem, dos povos que aqui habitam e que já caminharam por aqui, das vidas mais-que-humanas que nos antecedem e nos ultrapassam.
O cuidado radical exige responsabilidade: mover-se com atenção. Construir relações que não violentem o território, mas que o fortaleçam. Criar obras que devolvam algo ao vale que já nos dá tanto. — Nem que seja mais silêncio, mais sombra, mais respeito.
Mais que um programa artístico, esta residência é um pacto:
um compromisso com modos de existência que honram a terra,
uma prática de resistência frente à lógica de exaustão do mundo.
Aqui, no Vale da Raposa, o território é companhia e guia.
E o cuidado radical nos orienta para outros futuros possíveis, futuros que fortalecem a pulsão de vida.